Resistir para existir

Marx diz que a população de rua não tem potencial revolucionário. O que eu vejo é um galera que sabota diariamente o capital nas mais diferentes formas. Gente com vida itinerante que ameaça a moral vigente dos mais variados modos. “Somos da rua e nosso bloco é popular! Pra pular!” O povo da rua é gente que desterritorializa o privado de tal forma que dá medo nas veinha rica. Aquelas tipo branquinhacomopoodlezinhoqueusalaquêquevaiamissatododomingosensocomumqueaplaudeapoliciaequeéafavordapazmundial que acham que todo mano da rua é drogado e vagabundo. “Frio? Eles nem sentem mais frio, eles são drogados”, disse uma do Menino Deus. Será que elas acham isso porque imaginam o quanto deve ser difícil dormir na rua? E o frio? “Nada melhor que uma canha pra esquentar”. E a mana que foi estuprada por sete caras ao mesmo tempo? “Tu prefere que eu use crack ou que eu me mate?” E a violência policial? “Vamo fumá um pra dar risada e esquecer”. Lembro duma história que um mano que me contou: chegou uma trans mostrando um roxo no olho dum atrack violento da polícia dizendo “olha a minha maquiagem nova”. Sabe resiliência? A galera da rua dá uma aula sobre isso. “Tão na rua porque querem, o Estado dá lugar pra eles morarem de graça”. Albergues tem um cheiro de cocô e de desumanidade, algo bem parecido com o dos manicômios e das prisões. Lá pessoas são enjauladas não no sentido figurado, a galera nos alberrgues dorme numa sala com uma grade que fica chaveada. Pra pedir alguma coisa pros monitores tem que apertar uma campainha que fica no canto da sala. Aí uma mana passa mal, bate na porta porque não consegue chegar até a campainha e sabe o que o monitor faz? Chama a polícia. Uma trans que tinha sido agredida pega na bunda do enfermeiro. E o que ele faz? Chama a polícia. Não existe manejo. Intervenção sem vínculo não é intervenção, é violência! Maldita  lógicamédicocientíficaquedámuitolucropraindustriafarmacêutica (e o dinheiro do SUS que vai pras Comunidades Terapêuticas?) Colegas trabalhadorxs da assistência e da saúde que querem internar compulsoriamente, tirar da rua, fazer arranjar um emprego, parar de usar droga, tudo isso sem perguntar pra pessoa o que ela quer, vocês tem um ótimo papel na sociedade: um papel higiênico. Discurso moralizantes. Teve aquele prédio na Matriz que fez um abaixo-assinado pra tirar a galera da rua dali. “Mas pra fazer abaixo-assinado pra gente ter casa ninguém faz, né?” A galére universière apoia a população de rua, mas quando rola mano tomando ruim dos porco bem na tua frente não deixa de tomar sua cervejinha. Tem gente que faz okupação libertária nos espaços que já eram ocupados pelos mano da rua. Qual é o perfil do morador de rua? No teu cu. A galera da rua é múltipla e suas vivências não são lineares como as nossas. São os In-visíveis, os que ninguém vê. São tantas histórias, tantas dores… E a questão de gênero? As mana são poucas porque pra elas é mais foda. As rad falam que homem não pode ser ator do feminismo. Levei um mano pra assistir o show da minha banda e ele ficou chocado “Tu vai cortar meu pau?”, mas depois de trocar várias idéias o cara disse que tinha 40 anos, foi educado assim e nunca tinha pensado de outra forma, que diz que o “feminismo” é um mundo que ele nem sabia que existia, que não pode dizer que nunca bateu em mina, mas que da próxima vez ele sabe que não vai bater. A gente troca ideia com os mano e depois vê uma manchete da Zero Hora “drogadito salva menina de estupro”. O homens não podem ser protagonistas da luta contra o machismo , mas são um dos atores sim, assim como xs brancxs não podem ser os protagonistas na luta contra o racismo. A mesma princesinha que “libertou” os escravos inaugurou o Hospital Psiquiátrico São Pedro. Na rua ser usuário é foda, ser mina é foda, ser negrx é foda, ser sexualmente desviante na rua é foda. Eu digo “eu quero o fim do Estado” e a galera grita “quero o direito a ter direitos”. Nada é nosso, tudo é nosso! “Quero ver prender os trafi grandão tipo Aécio. Esses vocês não matam né, covardes!” Abstinência, ter uma casa, um emprego de carteira assinada, uma televisão, ser cidadão de bem que paga impostos e sonha em ter aquele Hylux Ronda Sivic 4 x 4 cabine dupla 9.0 depois sair na rua pra pegar o busão e morrer de medo de ser assaltado e perder o celular. A miséria erradicada não chegou no povo da rua. O da vila também estigmatiza o da rua. E quando tu pretensiosamente acha que tem todas as respostas ,o mano pergunta: “Porque tu decidiu trabalhar com nós?” Putz.. porque mesmo? Não sei, só sinto.. sinto que é porque o povo da rua resiste, de múltiplas formas descentralizadas, coletivas (porque ninguém sabota sozinho). Nesse rizoma globalizado da ditadura de mercado eu fico pensando: será que até o afeto pode ser capturado? Prefiro acreditar que não. E resistir ombro a ombro com o povo da rua com muita arte, apoio mútuo, subversão, horizontalidade, saúde coletiva e política ativa. Nas ruas, nas praças, nos becos… a revolução micropolítica está em todas as partes e em todos os lugares. Talvez não consigamos mesmo atingir todas demandas concretas do Movimento no plano macro, mas sinceramente eu me sentiria péssima se estivesse do lado dos que tão ganhando. Mas a galera de rua ta cada vez se aproximando mais, as redes estão se tecendo cada vez mais, estamos cada vez mais unidos e com cada vez menos paciência pra discursos de autoridades. “A gente tá loco pra botar fogo nessa tal de burocracia”. Aos grandões: cuidado! Seus privilégios podem ser ameaçados sob forma de uma performance teatral cotidiana feita por mora-dores de rua chamada “resistir para poder existir”.

Sobre Richter

A realidade não me é conveniente.
Esse post foi publicado em Uncategorized. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário